terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

E se não fosse o Direito...

... quem sabe hoje em dia eu seria do Bicho.

Há uns anos, quando eu ainda exercia uma profissão respeitável, tive um problema. A aula versava sobre liberdades públicas e, em especial, liberdade de expressão e o conflito entre a liberdade artística e direitos individuais.
Citei o famoso caso Mephisto do Tribunal Constitucional alemão e lancei mão de algumas perguntas. Já encerrando a aula, fiz a besteira de cantarolar o samba "O Bingo" do maior dos sambistas de duplo sentido, Dicró:


Vou fazer um bingo
Lá na casa da vovó
O prêmio é minha sogra
Sai numa pedra só
Quem ganhou tem que levar
Leva essa droga pra lá
(...)
Na terceira pedra
O prêmio de consolação
Leva um criolo bicha
E uma branca sapatão
Quem ganhou tem que levar
Leva essa droga pra lá


A segunda estrofe, como se pode supor, foi a que me trouxe problemas. Uma aluna, muito progressista, com a cabeça aberta – aberta o suficiente para que as ideais não permanecessem muito tempo nela – me xingou, disse que ia me denunciar para a direção como racista, preconceituoso, machista e estúpido.


Eu, atônito, não consegui responder nada, a não ser balbuciar: „mas é a letra de um samba conhecido, não fui eu que escrevi...“ De nada adiantou. Fui chamado pelo diretor, que me pediu que eu, da próxima vez, permanecesse nos casos dos Tribunais e não mais cantarolasse em aula. Tudo certo. Nunca mais cantei e, muito provavelmente, nunca mais cantarei.

Essa semana, depois de receber a dica de um amigo, baixei (legalmente) o novo disco do Marcelo D2, com regravacoes do „mestre da malandragem“, Bezerra da Silva. A primeira coisa que me veio à mente foi a imagem daquela aluna, feliz, lesta e faceira, sambando em um show do Marcelo D2. Tudo bem, tudo bom, até a segunda ouvida, quando eu realmente prestei atenção nas letras.

Pois bem. A segunda imagem que me veio à mente foi dessa mesma aluna esperando na porta do Ministério Público, com um CD na mão e uma notícia-crime na outra, querendo prender o cantor, o finado Bezerra da Silva, o produtor do CD, a gravadora e todo mundo mais que tivesse qualquer coisa a ver com aquele „horror“.
Não me entendam mal. Ela não estaria reclamando da qualidade artística, que agrada até aos que não são afeitos ao samba. O CD é muito bom, bem produzido e, estranhamente, Marcelo D2 convence como sambista.

A reclamação dela seria em função das letras, onde é possível verificar: 
1) uso de termos racistas, 
2) incentivo à violência doméstica, 
3) incentivo a violência contra os menos favorecidos, 
4) uso de expressões machistas, 
5) uso de expressões sexistas,
5) incentivo ao uso de drogas, 
6) utilização de propriedade alheia, 
7) porte irregular de arma de fogo, 
8) discriminação religiosa, 
9) apologia dos jogos de azar, e mais tantas outras.

Alguns exemplos podem deixar mais clara a razão da revolta dessa minha ex-aluna. Na música A Semente, um vizinho joga uma semente estranha propriedade alheia e lá mesmo cresce um "tremendo matagal" e o coitado do dono do terreno é preso. Um horror.


Na canção Minha sogra parece sapatão há uma caracterização extremamente racista e sexista da sogra do cantor, algo inaceitável em uma sociedade que pretende manter a liberdade de opção sexual aos cidadãos. A sogra dele "bebe cachaça e fuma charuto, tem bigode e cabelo no peito" e ele afirma que "não sei não, minha sogra parece sapatão". Além disso, para fixar a ideia de que ela é uma homossexual feminina, ele afirma que „quando o malandro toca nela é aquele alvoroço, Ela faz assim para o esperto qual é a sua seu moço, Da fruta que você gosta eu como até o caroço.“
Mais uma clara demonstração de sexismo, ao tratar as mulheres como mero objeto, seja por homens, seja por outras mulheres. Horror, horror.


No samba Bicho Feroz, o protagonista é sempre visto com um revolver na mão e por isso "é um bicho feroz". Quando está desarmado, aqui o preconceito fica claríssimo, ele "anda rebolando", numa clara inferência ao homossexualismo do portador da arma de fogo.
Numa outra canção, o sambista afirma que "se não fosse o samba quem sabe hoje em dia eu seria do bicho", fazendo hialina apologia ao jogo de azar conhecido como "Jogo do Bicho" que tanto retira dinheiro das pessoas carentes. Veja-se que horror esse samba!!!

Num samba que pode ser caracterizado como de "crítica social", o sambista afirma que o Candidato caô caô fez uso de substância entorpecente ("até bagulho fumou") e em outra, afirma que preparará seu „cigarrinho de artista“, mas não fará uso da substância ao declarar que "Vou apertar, mas não vou acender agora..."


Em outra crítica social versada em forma de samba, há uma verdadeira enormidade criminal. O samba caracteriza o denominado Malandro rife e afirma que
Quando pinta um safado no seu morro
Assaltando operario botando pra frente
Ele mesmo arrepia o tremendo canalha
e depois enterra como indigente
(Update: me informa um amigo que há um complemento. Depois disso ainda aparece um "ele é decente!").  


Noutro samba, chamado Pai Véio 171, há uma descrição caricata de pessoas que exploram as crencas das outras pessoas. Uma pena a utilização do samba para fazer graca da religião alheia. Aquela aluna, nesse ponto, deve estar enfartando...
A pior delas, contudo, é o samba Quem usa antena é televisão. Veja-se a letra: 
Lá na minha bocada
A crioula do Chico
Pedia socorro
Chorava, gemia
O coro comia
A nega apanhava
Que nem um ladrão
Isso aconteceu
Em uma madrugada
De segunda-feira
O Chico voltava
Lá da gafieira
E flagrou um esperto
No seu barracão...
Ele disse
Que quem usa antena
É televisão
E só estava
Cobrando da nega
Essa vacilação...
(…)
Eh! E tem mais o seguinte
Vamos botar logo
As cartas mesa
Eu fico no barraco
E você leva a nega
Essa piranha brava
Eu não quero mais não

Aqui pode-se dizer que há uma junção de todos os outros: racismo, violência doméstica, abuso, machismo, misoginia, linguagem ofensiva às mulheres, etc, etc.
A esta altura, a aluna já morreu na porta do MP, ainda sem entender como as pessoas podem ser tão insensíveis com as causas da nossa sociedade. Ela, uma progressista que só quer o bem de todos, é que tem que lutar sozinha contra esses abusos cometidos por um sambista...

Moral: Até onde vão os limites da liberdade artística? Essa é uma bela questão. Uma coisa é óbvia: eles vão muito além daqueles estipulados pelo politicamente correto...


* * * * * * 

Para quem quiser ver uma obra prima da crítica social em forma de samba, basta ver ouvir Meu Bom Juiz.

Aqui uma bela crônica sobre as barbaridades que o politicamente correto pode fazer com a nossa literatura.