terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

E quem decide o „tudo“?

Vale tudo pela fama?! O problema, como fica claro no título, é a definição do “tudo”. 

Acabo de ler essa notícia, afirmando que há um Projeto de Lei que "proíbe as emissoras de rádio e TV de transmitirem situações e cenas que atentem contra a dignidade humana".  Maravilha. Desconheço qualquer pessoa que seja contra a proteção da dignidade humana. Se algum dos meus 3 leitores conhecer alguém, pode chamar de estúpido e dizer que o Pedrinho mandou.

O cerne, contudo, não é esse. O centro problemático é a definição de dignidade humana e o que ela protege ou deveria proteger.

Uma mãe que se expõe no "Ratinho" a fazer um exame de DNA para descobrir se o pai do seu filho é o João, o Jorge, o Carlos, o Roberto, o Wanderson ou o Cleiton está ofendendo a sua dignidade humana?  

Uma mulher de 28 anos que, com aspirações artísticas, exibe-se semi-nua na televisão viola a sua dignidade humana? E uma de 18?! E uma 78?!

Um sujeito absurdamente feio que se submete a ser motivo de piada está ofendendo a sua dignidade humana?  

Alguém que come grilos, minhocas, olhos de cabra, e o que mais, está ofendendo a sua dignidade?

E, por fim, alguém que se tinge de prata e sai por aí a dançar de sunga está ofendendo a sua dignidade?!  

Onde está o tudo aí?! Qual é o limite do tudo?! Onde se dá o ponto na linha? Esses tudo descritos acima ofendem a "dignidade da pessoa humana"? 

Certo é que tirando crianças e pessoas incapazes de expressar validamente a sua vontade, aqueles com capacidade jurídica para tanto devem ser (e são!) livres para fazer o que quiserem, desde que não firam direitos de terceiros e não violem as condições gerais de convivência civilizada.

O que não se pode aceitar, contudo, é que um projeto de lei, utilizando-se de um conceito absurdamente vago, venha tentar dizer o que pode e o que não pode ser feito por um adulto, capaz de tomar as próprias decisões. Em última instância, esse adulto pode acreditar que a sua dignidade humana não vale nada e se matar. Ou não pode?!

Não se pode esquecer, e seria bom lembrar os nossos legisladores, que uma das facetas da dignidade humana é fazer uso do que ela mesmo é. Confuso?! Pois é... Se uma das facetas da dignidade humana é, digamos, o direito à intimidade, a concretização da dignidade humana pode se dar pelo próprio exercício desse direito à intimidade, de forma positiva ou negativa. Se quero proteger a minha intimidade, a dignidade humana me dá suporte, na forma positiva. Se quero abrir mao desse meu direito à intimidade, a dignidade humana está lá, auxiliando no seu lado negativo. Pegue-se o exemplo da menina de 28 anos que se exibe em rede nacional: e se ela não souber fazer mais anda além disso?! Restringir a sua "única" atividade não seria violar a sua digidnidade? E se o seu grande sonho é ficar conhecida pelo corpo?! Proibi-la de atingir esse sonho não seria violar a sua dignidade?!

Se uma das facetas da dignidade é não ser submetido a tratamento cruel, a pessoa que se auto-submete a um tratamento que, para a maioria seria considerado cruel está dizendo, no uso da sua dignidade em conjunto com a sua liberdade, que aquele tratamento, para ele/ela não é cruel. As opções sexuais não ortodoxas (sadomasoquismo e quejandos) são um belo exemplo. E se o sujeito não consegue ser feliz sem apanhar?! Restringir esse seu direito à felicidade não seria violar a sua dignidade?! (Ouvi dizer que há um livro sobre isso a ser publicado em breve...)

O que pode se discutir, e isso são outros duzentos e cinquenta, são os padrões e regras para a televisão aberta. A Constituição tem as suas regras sobre isso. Agora, tentar limitar a programação com base na dignidade humana é complicado, para dizer o mínimo.  

Ao fim e ao cabo, esses projetos têm apenas uma coisa em comum: o paternalismo. Esse paternalismo que acredita que as pessoas não podem tomar as decisões por si mesmas. O paternalismo que acredita que as pessoas são incapazes de decidir o que lhes faz bem.  O paternalismo que acredita que adultos capazes de todos os outros atos da vida civil/penal, inclusive o de votar, são incapazes de decidir como devem usar de sua liberdade para conformar a sua própria vida. Enfim, que precisam de um "pai“ acima delas dizendo o que pode ou não ser feito. Não nos esquecamos que "quando os cidadãos são tratados como crianças, convém lembrar que as crianças não são anjos", como bem lembrou aquele português.  

* Essa discussão sempre me faz lembrar de um filme (documentário?) sobre o Jerry Springer, aquele sujeito que leva as pessoas para brigar no seu programa de televisão há quase 20 anos. Numa cena, depois de se expor ao ridículo de apanhar da sua mulher, o sujeito responde a entrevistadora que o havia perguntado o porquê dele estar ali se submetendo aquilo: „I´m on TV, bitch! Now I´ll be famous in my neighborhood and that's the best damn thing that has ever happened to me in my whole fucking life...“

Em uma vida recheada de privações, dificuldades e humilhações não públicas e não publicadas, se deixar humilhar publicamente é a própria concretização desta tal de „dignidade humana“... Sad, so very sad, but true!  

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