sexta-feira, 3 de abril de 2009

Os doces montes cônicos de feno

A meu amigo Octavio N.
Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Primavera, que as flores
Estão se abrindo, e outrora estávamos no Flor de Maçã: as ávores verdejarão
Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros
Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia
Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que faz calor em Heidelberg
E apesar de hoje estar chovendo, amanhã certamente o céu se abrirá de azul
Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que o Neckar continua no mapa
E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas
E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto
Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres
Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem
No meu caminho. Digam-lhe que a menina da Mensa
Continua impassível, mas o I. acha que ela está melhorando
Digam-lhe que o Antonio continua tomando chope, e eu também
Malgrado uma avitaminose B e o fígado ligeiramente inchado. Digam-lhe que o tédio às vezes é mortal; respira-se com a mais extrema
Dificuldade; bate-se, e ninguém responde. Sem embargo
Digam-lhe que as mulheres continuam passando no alto de seus saltos, e a moda das saias curtas
E das blusas sem mangas dão-lhes um novo interesse: ficam muito provocantes.
O diabo é de manhã, quando se sai para o estudo, dá uma tristeza, a rotina: para a tarde melhora.
Oh, digam a ele, digam a ele, a meu amigo Octavio
Procurador guerreiro, nota 10, atualmente em algum lugar do Rio Grande
Que ainda há auroras apesar de tudo, e o esporro das cigarras
Na claridade matinal. Digam-lhe que as águas do Neckar
Porquanto se encontre eventualmente cocô boiando, devido aos turistas
Continua a lavar todos os males. Digam-lhe, aliás
Que há cocô boiando por aí tudo, mas que em não havendo marola
A gente se agüenta. Digam-lhe que escrevi uma carta terna
Contra os promotores caxias: ele ia gostar. Digam-lhe
Que outro dia vi o Ruivo. Foi para o Brasil
E riu muito de eu lhe dizer que ele ia fazer falta à paisagem heidelberguense
Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na Rua Principal
Vi um pedinte em coma de fome (coma de fome soa esquisito, parece
Que havendo coma não devia haver fome: mas havia). Mas em compensação estive depois com um amigo
Que embora não dê para alimentar ninguém, ainda é um amigo.
Digam-lhe que o Thiago de Mello tem escrito ótimos poemas, mas que eu ainda não larguei esse blog.
Digam-lhe que está com cara de que vai haver muita miséria-de-meio-de-ano
Há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber e uma ânsia
Nas pessoas de se estrafegarem. Digam-lhe que o Marcelinho está na insulina
Mas que a (Co)Madre está linda. Digam-lhe que de quando em vez algum desconhecido passa
E ri com ar de astúcia. Digam-lhe, oh, não se esqueçam de dizer
A meu amigo Octavio N., que comi Käsespaetszle num restaurantezinho qualquer
E que aqui não há ovas e muito menos vatapá, e que tomei boas cervejas
Digam-lhe também que eu prossigo enamorado, mas sinto falta
De caju e picanha, e nas ruas
Já se perfumam os jasmineiros. Digam-lhe que têm havido
Poucos crimes passionais em proporção ao grande número de paixões
À solta. Digam-lhe especialmente
Do azul da tarde alemã, recortado
Entre o Castelo e a Biblioteca. Não creio que haja igual
Mesmo em Rio Grande. Digam-lhe porém que muito o invejamos e as saudades são grandes, e eu seria muito feliz
De poder estar um pouco a seu lado, fardado de segundo-sargento. Oh Digam a meu amigo Octavio N.
Que às vezes me sinto calhorda mas reajo, tenho tido meus maus momentos
Mas reajo. Digam-lhe que continuo aquele modesto estudante
Porém batata. Que estou perfeitamente esclarecido
E é bem capaz de nos revermos na Europa. Digam-lhe, discretamente,
Que isso seria uma alegria boa demais: que se ele
Não mandar buscar os amigos antes, que certamente Os levaremos conosco, que quero muito
Vê-lo em Paris, em Roma, em Bucareste. Digam, oh digam
A meu amigo Octavio que é pena estar chovendo aqui
Neste dia tão cheio de memórias. Mas Que beberei à sua saúde, e ele há de estar entre nós
O bravo Procurador N., seguramente o maior jurista-surfista do Brasil
Grave em seus óculos de míope, suas sobrancelhas e seu nariz proeminente
Terno em seus olhos de poeta não-publicado
Feroz em sua memória de estudante solitário
Delicado em suas mãos e no seu modo de falar ao telefone
E brindaremos à sua figura, à sua poesia única, à sua revolta, e ao seu vegetarianismo
Para que lá, entre as velhas paredes renascentes e os doces montes cônicos de feno
Lá onde a cobra está fumando o seu moderado cigarro brasileiro
Ele seja feliz também, e forte, e se lembre com saudades
De Porto Alegre, de Passo Fundo, de nós todos e ai! de mim.


  * O original pode ser lido aqui e ouvido aqui.