quinta-feira, 29 de março de 2012

RIP, Millôr


Ao contrário da morte do Chico Anysio, acho que a perda de Millôr Fernandes realmente deixa o Brasil - e os brasileiros - menos inteligentes e menos divertidos. Ele praticava um ceticismo erudito ou, talvez, uma erudição cética; ele era um cético simples e erudito, ou um homem simples, erudito e cético, ou um cético simples em sua erudição. E tudo ao mesmo tempo, numa mistura que, atualmente, poucos podem ser dar ao luxo. 
Os vídeos que coloquei após a morte do criador da Salomé de Passo Fundo serviam para mostrar que existiam outros que faziam humor - diferente, mas ainda assim humor - de alta qualidade na televisão brasileira. 
O que Millôr fazia não há igual. E, infelizmente, não haverá igual. 

*   *   *   *   *   *

Nem só Pelé vive a glória do esporte:

Millôr (modestamente) vai completar 5.000
Negócio seguinte: até hoje não tenho feito reivindicações quanto a direitos meus. No pretenso anarquismo que me atribuem, figura justamente o princípio da suprema maturidade em relação ao meu semelhante, ou seja, cumpro o meu dever sem exigir o meu direito. (A não ser quanto às autoridades. Ao contrário do que elas se arrogam, no Brasil, elas não têm nenhum direito e têm todas as obrigações.)

Assim, sendo, não faço barulhos que incomodem o próximo depois das dez (os barulhos que faço não incomodam) e não reclamo dos barulhos alheios. Quando o cara vem na contramão (eu sei que ele está apenas corrigindo mais uma burrice do Kamerade Celso Franco, dono do Detran) eu me afasto pra deixar ele passar e não grito indignado: "Contramão!". Os poucos prêmios que recebi por minhas atividades pseudo-artísticas, eu devolvi às comissões subintelectuais que me distinguiram (ofensa não!).

Mas agora, bem, agora é demais. Agora sofro injustiça tão grande, tão clamorosa, numa atividade a que estou tão intensamente ligado, que não posso deixar de protestar. Não tenho nada contra Pelé ser homenageado de todas as maneiras ao completar 1.000 vezes em que mostrou sua potência específica, vazando o adversário, fazendo balançar o véu da noiva. Mas acho o seu feito meio fajuto perto do meu. Eu merecia muito mais: estou, posso dizer em absoluta honestidade e precisão, me aproximando da cincomílima vez em que faço o mesmo. No meu campo, é claro. Que tem apenas 1,90 por 1,70, não atrai o público pagante, não tem crítica especializada, mas nem por isso é menos popular do que o Maracanã. Acontece, porém, que minha atividade é um pouco mais difícil do que a do Divino Crioulo. Não é mole não. Não é, nem pode ser.
Coisa esta: depois de precisa contabilidade, descontando todas em que minha memória pudesse estar me traindo, apelando para as memórias de velhas amigas com quem tive oportunidade de me confrontar em dias idos, cheguei à conclusão de que estou muito perto das 5.000. Aliás, sei com exatidão a conta mas não pretendo divulgá-la ainda, por motivos particulares, sobretudo para evitar pressões: "Como é Millôr, sai hoje a 5.000?" "Como é Millôr, entra hoje a 5.000?" "Epa, Millôr, quem é a tua Andrada?" "Como é, Millôr, a 5.000 vai ser na Bahia, ou aqui mesmo na Guanabara?"
Cinco mil! Muitos pensarão que exagero, mas acho que sou até modesto, que estou me colocando dentro da mais absoluta normalidade, numa sóbria média de 3 por semana (não sou nenhum caso A.D.), com apenas uma dezena de goleadas através de minha vida profissional. Dentro desse esquema tão raro (que é a normalidade) os 1.000 de Pelé, pra mim, são pinto. Pinto, eu disse? Escapou-se-me a palavra.
Como ele, já penetrei na meta adversária driblando outros, já entrei com bola e tudo, de bicicleta, de saída, quase no fim da jogada, quando pensavam que eu não ia conseguir alterar o marcador, já entrei de lado, com violência, na maciota, na banheira, com malícia. Em suma: posso dizer que já fiz profissionais competentes engolirem frango, nunca marquei gol contra e já joguei em todas as posições. Tive, sobre Pelé, apenas uma vantagem, o adversário também objetivava o gol. Queria deixar entrar.
Minha carreira começou numa pensão da Glória. Mariazinha sem sobrenome (o meu Zaluar), registrou meu primeiro tento, depois de impedir algumas tentativas (na verdade não apreciava muito o esporte).Seis ou sete anos depois eu completava, sem que a imprensa desse a menor notícia a respeito, a número 1.000. Meu Andrada foi uma moça de São Paulo, (sempre adorei São Paulo) e, como o craque argentino, também chorou de emoção, embora, acredito, não pelos mesmos motivos. E, nos meus 1.000, foi o adversário vencido quem beijou a(s) bola(s).
Meia dúzia de anos depois, também sem nenhuma badalação (e não era por falta de badalo) eu completava a 2.000. Já então havia televisão. Vocês pensam que o Heron e o Rubens Amaral se cumprimentaram pelo meu feito? Nunquinha. Nem tomaram conhecimento.
Também minha contagem de 3.000, da qual saí com séria luxação no menisco (é menisco que se chama, pois não?) passou despercebida de tudo e de todos. Às manchetes do dia eram sobre a guerra fria. É por isso que os jornais não vendem. Se O PASQUIM existisse, evidentemente, teria dedicado sua primeira página à paz quente.
A número 4.000, homologada em ambiente próprio, com uma praticante cheia de vigor, foi feita (a atitude de Pelé é pura imitação) em homenagem às crianças pobres, pois a moça se preveniu com pílulas para evitar aumento de população e suas conseqüências sobre o pauperismo nacional. Ainda desta vez a publicidade não registrou o fato, o feito, e eu, discretamente, fiquei na moita (que, aliás, era onde eu estava).
Mas, agora, chega! Agora os veículos de publicidade têm que tomar conhecimento, a mass mídia tem que reconhecer e propagar o que faço. Agora a injustiça tem que ser reparada. Agora a imprensa tem que acompanhar passo a passo os meus passos, a televisão tem que mandar seus câmaras atrás de mim pra me dar cobertura enquanto eu, por minha vez, dou a minha.
Ainda não decidi, nem cabe a mim decidir sozinho (pois a coisa depende de circunstâncias e oportunidades) onde, como e com quem vou me defrontar para a 5.000. Terá, naturalmente, que ser com uma adversária à altura. Parece que o governo da Guanabara já está disposto a me oferecer a Praça General Osório, pra que a imprensa estrangeira possa também fotografar o magno acontecimento. Depois do sucesso do entrevero entre dois jovens na Ilha de Wight todos concordam em que esse esporte de alcova tende a se tornar público. De qualquer modo, o local ainda não está definitivamente resolvido, nem a modalidade conveniente para o ato que deverá motivar os mais jovens, tão carentes, ao que dizem, de inspiração nesse setor.
Questão fica assim: preciso me resguardar pra não realizar a 5.000 em local inconveniente ou momento inesperado, cedendo à provocação de uma amadora ocasional. Pois é evidente que vai haver muita provocação por parte de pessoas não credenciadas, que quererão participar da glória do evento. Tenho que me cuidar para que não me raptem, não me forcem, não me obriguem à 5.000 em local indevido, hora imprópria, pessoa inadequada. Também antes que os gozadores (lato senso) da praça (General Osório) comecem a propalar que talvez eu não consiga, que talvez eu pincele (o verbo pincelar vai aqui em homenagem aos pudicos, para não usar palavra referente a pincel mais grosso), afirmo logo que considero isso natural, no caso, e acredito mesmo que consiga chegar às 5.000 com excessiva facilidade. Pelé não tremeu, não se emocionou, não demorou a marcar o seu modesto milheiro? Nada mais natural que eu também fracasse algumas vezes diante da meta (atenção revisão: sem circunflexo ). A responsabilidade é enorme, o país inteiro está de olho em mim.
Mas eu chego lá. E garanto que, desta vez, tenho à mão inúmeros meios de divulgação, para registrar o feito histórico, senão único, pelo menos raríssimo neste mundo de incomunicabilidades. Pois a aldeia é global, mas ninguém come ninguém.
E, seja como for, mesmo que toda a imprensa comprometida com a glória de Pelé me ignore, me abandone, me sabote, tenho comigo, fielmente, os meus amigos d'O Pasquim, que já se cotizaram e, na passagem do grande acontecimento, vão, publicamente, me oferecer não uma, mas duas bolas de ouro.



O Pasquim n° 25, Dezembro/1969. Copiei daqui